ANNABELA RITA: "Autobiografias...ou talvez não."
ANA ANDREIA BUGALHO MAIA: "Pascoaes e Camilo: os dois sujeitos em O Penitente."
Em
1942, Teixeira de Pascoaes dá à estampa a biografia sobre a qual nos deteremos
nesta comunicação, O Penitente. Biografia
sobre um dos seus “fantasmas” de sempre, Camilo Castelo Branco, é escrita com
uma eloquência comovente e apaixonante, através da qual nos apercebemos da
extrema afinidade entre os dois sujeitos. O objetivo desta comunicação é, por
conseguinte, determo-nos em O Penitente,
considerando que este ocupa uma posição singular na obra de Pascoaes biógrafo. No
entanto, o que mais interesse nos suscita é a forma como Pascoaes vê Camilo: ser
excecional, inconfundível, pecador e penitentemente santo; um
Camilo, ao mesmo tempo, parecido com Paulo e com Napoleão. Pascoaes não só
exibe que não é apenas no escritor, mas no homem em geral, que a atitude
metafísica se apresenta como único dado verdadeiramente interessante, como
também explora o imenso combate com Deus e a inquietação que estão subjacentes à
biografia do romancista de Amor de
Perdição. Em suma, é o seu modo particular de ser religioso que inspira o
narrador a tratá-lo de forma singular e distinta de todos os outros seus
biografados.
ANA ISABEL VASCONCELOS: "Mercedes Blasco e as memórias biográficas de uma época."
No decurso de investigações
feitas sobre a história da actividade teatral em Portugal (séculos XIX e XX),
verificou-se a existência de uma série de obras de índole memorialista, cuja
autoria pertence a indivíduos profissionalmente ligados à vida espectacular.
Prolongando uma prática oitocentista, autores, actores e “ensaiadores” irrompem
pelo século XX, escrevendo e publicando as suas memórias. Se bem que de
importância desigual e com características diversas, estas obras, pouco
conhecidas e nada estudadas, constituem hoje documentos de valor inestimável,
sobretudo no âmbito da história da cultura.
Apesar de alguns investigadores
terem considerado a prática memorialista como reveladora de uma atitude de
contemplação passiva, inibidora e atávica, a verdade é que esse género de
textos é hoje encarado na sua dimensão testemunhal, constituindo-se como
narrativas biográficas que necessariamente expõem, entre outros aspectos,
referenciais culturais, indiciadores, por sua vez, de mentalidades.
A história do teatro português,
tal como a história da nossa cultura, é escassa em nomes no feminino, sendo
normalmente ignorado o papel que as mulheres desempenharam em diversas áreas,
mesmo no domínio público. No que respeita ao início do séc. XX, o conhecimento
que vamos tendo da sua importância chega-nos, em parte, pela informação
encerrada em memórias, algumas escritas pelo punho das protagonistas, e que,
não tendo exactamente o formato da biografia, partilham alguns dos processos e
perseguem os mesmos objectivos.
Neste nosso estudo, começaremos
por resgatar a figura de Mercedes Blasco, (1870-1961), pseudónimo de Conceição
Vitória Marques, actriz, intelectual, escritora e tradutora, através da análise
de três das suas obras de teor auto-biográfico: Memórias de uma actriz (1907); Memórias
de uma actriz: apreciações e críticas (1908) e Vagabunda – 1908/19 (1920). Numa entrevista que deu imediatamente
antes da publicação do primeiro destes três livros, Blasco afirmou:
“Intitulei-o “Memórias de uma actriz” e nele narro não só a minha vida
artística, como a minha vida galante; nele perpassam algumas das figuras mais
em proeminência, hoje, na política, nas letras e na arte. Não escondo que é um
livro para fazer escândalo – um livro para emocionar, para ser folheado por
todos os que queiram conhecer, não só os segredos de bastidores, nos seus
múltiplos e variados episódios, mas o estudo de uma época, do ambiente social
que me tem cercado.” Quanto à abrangência, esclareceu: “Começa nos primeiros
pensamentos que me guiaram a uma vocação irresistível para o teatro. […]
Depois, acompanha a vida literária e artística dos últimos anos, faço citações
curiosas e verdadeiras relativamente à época, refiro-me a Guerra Junqueiro, a
João de Deus, a Gomes Leal, a Marcelino Mesquita, finalmente a todos os grandes
escritores do meu tempo que tão bem tenho conhecido e compreendido nas suas
obras. A parte histórica é interrompida com considerações filosóficas minhas.”
Num breve estudo biográfico que
foi feito desta figura, referiu-se-lhe o autor como “um dos mais luminosos
astros do meio intelectual português, no qual usufruiu das melhores relações e
amizades”, tendo privado, entre outros, com Guerra Junqueiro, Gomes Leal, Brito
Camacho, Angelina Vidal, Carlos Malheiro Dias, Albino Forjaz Sampaio e Henrique
Lopes de Mendonça. Na qualidade de actriz, contracenou com as estrelas dos palcos
de então, como Palmira Bastos, Augusto Rosa, Eduardo Brasão, Virgínia, Ângela
Pinto e Adelina Abranches, sendo inúmeras as referências substantivas às
figuras que compõem a história da nossa cultura na primeira metade do séc. XX.
Assim, tratando-se reconhecidamente
de uma protagonista de créditos firmados no meio intelectual português na
primeira metade do séc. XX, com uma considerável bibliografia, enquanto autora
e na qualidade de tradutora, propomo-nos revisitar as suas obras de carácter
biográfico, perscrutando nelas os reflexos do pensamento de uma época.
ANA LUÍSA FERNANDES PAZ: "O génio em Teixeira de Pascoaes: como uma autobiografia do escritor."
Teixeira de Pascoaes foi
um dos muitos escritores e artistas da época a perfilhar uma ideia de génio
criativo inscrita no romantismo ético e estético. Embora tivesse sido uma noção
altamente mobilizadora, pouco explicitada foi pelos seus contemporâneos,
encontrando-se apenas subentendida nas imagens da inspiração, da Musa, da alma, ou da própria Arte. Além de ideal, a noção de génio pode todavia ser tomada e
analisada enquanto força linguística
de consenso e com significação profunda na ação social, nomeadamente na
constituição do self de um escritor.
Nesta perspetiva sugiro que, no limite, o auto-entendimento de um escritor como
criativo possa ser reconstituído pela indexação das imagens que firmaram a sua noção de génio. O objetivo desta comunicação será assim o de recolher e
analisar as referências ao génio artístico na obra de Teixeira de Pascoaes,
firmando como que uma antologia autobiográfica do labor autoral.
O tema será entendido
sob o prisma dos Estudos Culturais, nomeadamente da escrita enquanto ato de
distinção e mesmo de rarefação, problemática engendrada pelo estruturalismo e
subsequentes derivações, tão diferentes quanto as assinadas pelo filósofo
Michel Foucault, o sociólogo Pierre Bourdieu ou o linguista Roland Barthes. Na
sequência destes autores, tenho-me interessado por diversas práticas culturais,
entre as quais a escrita literária, avançando com a hipótese de o ideal de um
escritor ser clivado e maximizado a partir da noção de génio. Por esta via, pretendo auscultar a obra de
Pascoaes como um manancial de imagens fortes do génio criativo, onde importa
perceber como se realizou o transporte entre o desejo de escrita e a sua
efetivação.
O tema leva-me a reconsiderar
o ideário romântico, para onde remete a noção de génio como sendo mobilizadora
de uma escrita de cunho pessoal. Afinal, o extremado idealismo de Pascoaes
coloca-me um problema de história do
presente. De acordo com vários estudos da linhagem pós-estruturalista, as
imagens idealizadas do génio artístico podem tornar-se impeditivas do gesto
criativo e sugere-se mesmo que o apelo ao génio – incitado sobretudo pela
linguagem escolar – tem sido um fator de insucesso académico, paradoxalmente
nos graus mais avançados. Porém, observa-se que no caso de Pascoaes, como em
vários românticos, a ideia de génio não obstou afinal ao ato criativo, mas
antes o impulsionou permanentemente. O génio parece ter tido um efeito de
incentivo para Pascoais e nesta imagem se pode talvez vislumbrar o fluxo
constante entre a luz da sua pena criativa e o vasto
ermo sombrio onde a sua a obra repousa, consumada.
Metodologicamente,
o trabalho passará pela análise de conteúdo da obra de Pascoais visando a
reconstituição da gramática e da semântica do génio criativo, com maior
incidência nas obras biográficas, em que o autor foi obrigado a expor emanações
do self para fazer operar os
mecanismos de relação entre biógrafo-biografado. Desse manancial se envidará
uma análise das estratégias de produção do self
enquanto escritor.
Não se trata apenas de proceder à coleção, senão à configuração do problema
do ato de escrita em Pascoaes. Procura-se identificar o seu ideal e observar o
que nesse recorte possa ter sido impeditivo e catalisador. O quadro analítico
deve remeter, nesta apresentação, para um enfoque muito específico da história
da subjetividade, onde se atenderá tanto a Pascoaes como ao seu leitor
(imaginário). Frases como “A dor floresce um ramo e faz brotar um verso” ou “É possível
que entre o Crime e a Inspiração haja um certo parentesco” transmitem
perfeitamente o ideal da ambiência, emoção e razão constantes no ideário de
Pascoais.
Com
esta apresentação, pretendo assim fazer reverter uma série de instrumentos de
análise acerca da constituição de uma imagem
de si para si do escritor durante o ato de escrita, que sob o signo do
génio se revelou altamente profícua na consecução de uma obra unificada em
Pascoaes. Uma tirada de O
Homem Universal parece apontar nesse sentido ao separar o poeta (aquele que
vence o tempo e o espaço) do sábio (aquele que deseja aniquilar a sua vontade
criadora, em benefício do senso crítico). Criação estaria assim do lado da
poesia, onde Pascoaes firmou a sua força maior, fazendo equivaler o génio ao genius latino, uma força oculta, doméstica, de onde se gera algo de
imprevisível.
O tema proposto transforma-se assim na reconstrução de uma
hipotética autobiografia de Pascoaes, a ser analisada, em última instância, com
um objetivo instrumental, de trazer à ordem do dia noções e formas através das
quais o escritor se concebia a si mesmo como um criador. Caberá ao leitor
refletir e reaproveitar essas práticas.
ANTÓNIO BRAZ TEIXEIRA
ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO: "Albert Vigoleis Thelen e as biografias de Pascoaes."
A publicação de São Paulo de Teixeira de Pascoaes em 1934 e a recepção entusiasta de Miguel de Unamuno. Os dois textos de Unamuno sobre o livro: “San Pablo y abre España!” (25-5-1935) e “Cartas al amigo. A Teixeira de Pascoaes, portugués ibérico” (5-6-1935). A tradução castelhana do livro por Ramón Martínez López em 1935. A sua publicação em Barcelona (Editorial Apolo, 1935), com o primeiro texto de Unanumo a servir de prólogo. A forma como Albert Vigoleis descobriu e leu o livro na ilha de Maiorca. A descrição que faz do passo no seu romance posterior, Die insel des zweiten gesichts (1953). A correspondência epistolar que então encetou com Teixeira de Pascoaes. As primeiras tentativas de tradução do texto. O levantamento militar fascista em Espanha de Julho de 1936 e a partida de Thelen para a Europa central. Hendrick Marsman, poeta modernista neerlandês, associa-se ao plano das traduções de Thelen. Saída da tradução neerlandesa de São Paulo (1937) e da tradução alemã (1938). A recepção do livro na Holanda e na Alemanha: crítica e vendas. As reedições. A edição holandesa (1939) e a alemã (1941) de São Jerónimo e a Trovoada. Tentativa de compreender a recepção europeia das biografias de Pascoaes. O caso português e o caso europeu. Albert Vigoleis Thelen e Teixeira de Pascoaes.
ANTÓNIO CARLOS CARVALHO: "O Remorso e a Ressurreição do Homem."
Teixeira de Pascoaes publicou São Paulo em 1934 – ou seja, exactamente duas décadas depois do início da Grande Guerra, o conflito europeu e mundial que enterrou nas trincheiras e nas crateras das bombas uma certa ideia do Homem. É verdade que Pascoaes foi um forte defensor da ideia da entrada de Portugal na guerra, nas páginas de «A Águia» em 1914, 1915 e 1916, mas fê-lo em defesa da «alma latina» ameaçada pela «alma germânica», afirmando que a origem da guerra estava na «loucura do Kaiser, interesses comerciais, industriais, rivalidades económicas» e que, se Portugal fosse para a guerra, mostraria ao mundo que «estamos prontos a morrer pela pátria, que somos Alguém que vive porque quer viver, e Portugal criará então novas raízes na História». Pascoaes acreditava nesses ideais e não foi o único com esse estado de espírito nem a acolher a guerra como uma espécie de redenção dos povos civilizados face a um inimigo desumano. Mas nem ele nem os muitos entusiastas (e foram quase todos...) podiam prever que essa guerra atingiria proporções nunca vistas: a destruição do Homem, feito número, massa, carne para canhão, perante o triunfo da técnica e do material. E Pascoaes, português e europeu, também não poderia prever que uma certa Europa (para muitos, a verdadeira) iria morrer na «terra de ninguém» dos muitos campos de batalha onde depois iriam florescer as papoilas em profusão, vermelhas como o sangue que empapara a terra... E muito menos que dessa Primeira Guerra Mundial iriam nascer os germes da Segundo, aumentando ainda mais o nível apocalíptico da destruição de homens, ideias e ideais. Mas vinte anos mais tarde Pascoaes percebeu o que esteve então e estava agora em causa. E não é por acaso que escreve no final de «São Paulo»: «O mundo foi da Poesia, nos primeiros séculos da nossa era. Repetir-se-á o milagre? Voltará o deus dos poetas contra os sábios, que só acreditam na matéria, e com ela fabricam explosivos, gases asfixiantes, máquinas pavorosas? Nesta orgia industrial moderna, paródia,em ferro e vapor, da orgia pagã, o homem está morto ou isolado do seu espírito. Existe, mas não vive.» Com «São Paulo» e outras biografias romanceadas ou filosóficas – mas também com «O Homem Universal», em 1937, já em plena Guerra Civil de Espanha, ensaio geral para a Segunda Guerra Mundial -- Pascoaes faz um apelo desesperado ao remorso e à ressurreição do Homem. «Mas confiemos no espírito humano».
ANTÓNIO MANUEL DE ANDRADE MONIZ: "O herói guerreiro e místico n'A Vida de Nun'Álvares, de Oliveira Martins"
A partir dos traços característicos do subgénero biográfico
(exemplaridade ou, pelo menos, tipicidade da vida narrada; contexto familiar e
histórico, social e político; retrato físico, psicológico e moral do
protagonista; o seu percurso biográfico; relevância da sua intervenção humana),
propomo-nos perspetivar o livro em causa na obra de Oliveira Martins e no
contexto literário e histórico-político da Geração de 70, detetando as
principais fontes historiográficas que estão na base da sua narração, como a Crónica do Condestabre, a Crónica de D. Fernando e a Crónica de D. João I (I e II partes), de
Fernão Lopes. Exemplo cimeiro de heroicidade épica e mística, Nun’Álvares é
exaltado pelo biógrafo oitocentista como espécime rara de uma antologia (Flos Sanctorum) ou florilégio medieval,
resposta providencial à crise política e social da História de Portugal, pedra
angular da viragem para a Modernidade. Palavras-chave:
biografia, herói, cavalaria, guerreiro, místico.
ANTÓNIO MATEUS VILHENA: "Algumas páginas de memórias de Teixeira de Pascoaes e Raul Brandão: breve análise comparativa."
Após uma rápida definição do corpus literário de Pascoaes e Brandão que será objecto de análise, esta incidirá em aspectos salientes da vivência de ambos os escritores, sobretudo durante a infância e a adolescência, e concederá especial atenção a figuras, factos e ambientes que, de forma mais decisiva, marcaram esses períodos, ecoando, igualmente, no restante percurso das suas vidas. A metodologia adoptada consistirá em estabelecer um paralelo, o mais documentado e claro possível, entre as páginas selecionadas no conjunto da obra memorialística dos dois autores, tendo em vista sublinhar algumas afinidades e contrastes relevantes.
ANTÓNIO PEDRO VASCONCELOS: "Sinopse de A Biografia de São Paulo"
Estamos perante um livro genial, a biografia de São Paulo, de Teixeira de Pascoaes. E, no entanto, poucas vezes - a não ser talvez o São Francisco de Rosselini e o Cristo de Pasolini - alguém pintou tão de perto e tão ao vivo uma figura santa, mumificada por séculos de beata adoração. E porquê São Paulo? Talvez porque ele, o iluminado da estrada de Damasco, demoliu revolucionariamente, com a simples força da sua mensagem religiosa, um tipo de sociedade fundada sobre a violência de classe, o imperialismo e, sobretudo, a escravatura. O próprio Teixeira de Pascoaes sintetizou bem esta universalidade, em frases emblemáticas: "O apocalipse é de Israel, como a tragédia é grega e a elegia é lusitana". "De um lado, a filosofia racionalista, de origem grega, que leva ao cepticismo e à inacção; do outro lado, a poesia iluminada, que apaixona, de hebraica origem, sobrenatural.
Estamos perante um livro genial, a biografia de São Paulo, de Teixeira de Pascoaes. E, no entanto, poucas vezes - a não ser talvez o São Francisco de Rosselini e o Cristo de Pasolini - alguém pintou tão de perto e tão ao vivo uma figura santa, mumificada por séculos de beata adoração. E porquê São Paulo? Talvez porque ele, o iluminado da estrada de Damasco, demoliu revolucionariamente, com a simples força da sua mensagem religiosa, um tipo de sociedade fundada sobre a violência de classe, o imperialismo e, sobretudo, a escravatura. O próprio Teixeira de Pascoaes sintetizou bem esta universalidade, em frases emblemáticas: "O apocalipse é de Israel, como a tragédia é grega e a elegia é lusitana". "De um lado, a filosofia racionalista, de origem grega, que leva ao cepticismo e à inacção; do outro lado, a poesia iluminada, que apaixona, de hebraica origem, sobrenatural.
ARTUR ANSELMO DE OLIVEIRA SOARES: "José Caldas, biógrafo de Frei Bartolomeu dos Mártires, de Camilo e dos Humildes."
ARTUR MANSO: "O fundamento cristão do Homem Universal em duas biografias de Teixeira de Pascoaes: S. Paulo (1934) e Sto. Agostinho."
ARTUR MANSO: "O fundamento cristão do Homem Universal em duas biografias de Teixeira de Pascoaes: S. Paulo (1934) e Sto. Agostinho."
CONSTANÇA MARCONDES CÉSAR: "Biografias e modelos paradigmáticos do ethos."
DANIEL DE SOUSA PIRES: "Peculiaridades do discurso bocagiano de Teixeira de Pascoaes."
Visa a minha comunicação equacionar a contribuição peculiar de Teixeira de Pascoaes para a aferição da vida e da obra de Bocage, sendo igualmente trazidos à colação outros biógrafos do poeta.
FERNANDO PINTO AMARAL
GABRIEL GOMES
HENRIQUE MANUEL PEREIRA: "Relações dinâmicas entre biografia e epistolografia: o caso de Guerra Junqueiro"
Tem Guerra Junqueiro uma biografia? Dir-se-ia que sim, que até tem duas, uma de década de 1954/5 e outra de 1981. Qual a qualidade de cada uma? Serão elas, individualmente ou em conjunto, adequadas à leitura e compreensão do poeta? A correspondência de um autor ilumina-lhe a atividade do pensamento e ação, os seus percursos biográficos e geográficos. Tem Junqueiro a sua correspondência reunida e tratada sob a forma de epistolário? Volvidos mais de 90 anos sobre a morte do poeta, tal tarefa continua adiada. O escasso número de cartas publicadas manifesta problemas de leitura e – porque o poeta raramente as datava de forma completa, grave problemas de datarão. No caso de Junqueiro, que relações dinâmicas e complexas configuram o binómio biografia-epistolografia? É o que procuraremos circunscrever e analisar nesta comunicação.
ISABEL MÓRAN CABANAS: "Biografias de mulheres na obra de Carolina Michaëlis de Vasconcelos."
Formada e apoiada no rigor da
escola positivista de Gustav Gröber. Carolina Michaëlis de Vasconcelos (Berlim, 1851-Porto, 1925) dedicou-se
desde muito jovem à investigação dos fenómenos linguísticos e literários
portugueses, procurando sempre integrá-los
no espaço neolatino e, para além dele, no complexo cultural do Ocidente. Quer
nos seus trabalhos de maior extensão quer noutros mais breves, transparece uma
vastíssima erudição, tal como sublinha José Leite de Vasconcelos no preâmbulo à
lista de escritos de D. Carolina entre os anos de 1867 e 1911: “Chega a gente a pasmar de como
há cérebro que armazene tamanha quantidade de saber, e mesmo de como há maneira
de o assim adquirir e divulgar”. Revelou-se
sempre como uma excelente representante da prática do método
histórico-comparativo e uma insigne conhecedora de contactos e sobrevivências
de figuras insignes da cultura portuguesa e de textos que cruzaram os reinos
por múltiplos motivos históricos, em diferentes línguas e em diversos registos.
Na verdade, ela mostra-nos tanto a face nacional como panhispánica dos temas
que aborda, descobrindo e fornecendo-nos dados interessantes e novos que outros
virão a confirmar, perfilhar ou aprofundar em tempos ulteriores. Casada
com Joaquim de Vasconcelos e com residência no Porto, possui o mérito de ter
sido a primeira mulher a ser nomeada professora universitária, em 1911 e na
Faculdade de Letras de Lisboa, embora nunca chegasse a dar aulas aqui. Devido à
sua vontade de continuar a morar na cidade do Douro, obteve a sua transferência
para a Universidade de Coimbra, onde se encarregou com extraordinário empenho
do exercício docente. Entre o vastíssimo leque de investigações que levou a
cabo de forma pioneira, sobressaem os seus estudos sobre mulheres célebres na
história e no relacionamento ibérico, uma linha que encetou
com biografias sobre figuras renascentistas: a da infanta D. Maria e as suas
damas (Luísa Sigea e Joana Vaz, as "senhoras latinas"; Joana Vaz e
Paula Vicente, mais dedicadas à música; e Públia Hortênsia de Castro (ou a
"Hortênsia Lusitana"). A Mestra luso-germana resgatou do
esquecimento retratos destas damas feitos por eruditos em épocas anteriores, os
quais analisa pormenorizadamente, pondo em destaque questões como o mecenato cultural e espiritual no
entorno palaciano da princesa D. Maria; as virtudes poéticas, linguísticas e
diplomáticas de Luísa Sígea; os saberes filosóficos e as dotes oradoras de Públia
Hortênsia de Castro na defesa de teses face aos homens mais doutos; etc. E, ainda, outras mulheres
famosas na história de Portugal e dos contactos ibéricos, como Inês de Castro
ou a
insigne rainha D. Isabel de Portugal
(esposa de Afonso V), também foram objeto da atenção de D. Carolina através de
vias diferentes à elaboração de biografias: o estudo dos romances velhos; as
reflexões sobre a Saudade no âmbito da difusão das doutrinas da Renascença
Portuguesa, em plena campanha mentada e animada por Teixeira de Pascoaes; ou os
comentários acerca das recriações das vidas de mulheres que foram musas de
inspiração em diversas peças literárias, nomeadamente no género dramático. Por outro lado, não podemos deixar de lembrar que, bem
consciente da difícil situação das mulheres portuguesas nos finais do século
XIX e inícios de XX e de factores como o atraso educacional que se manifesta
não só no analfabetismo de estratos socias inferiores, mas também nas carências
intelectual de mulheres de classes sociais mais elevadas, redigiu artigos sobre
o movimento feminista em prol do trabalho e da educação como condições
decisivas para o processo emancipatório – com efeito, foi nomeada, em 1914,
Presidente Honorária do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas e
homenageada na revista Alma Feminina.
JOÃO PEDRO CAMBADO: "O problema religioso em Teixeira de Pascoaes: traços de ortodoxia e heterodoxia."
Se o problema religioso é “o único problema” (O Homem Universal), é, porém, certo que Teixeira de Pascoaes não apresentou uma resposta única, e muito menos unívoca, para o mesmo, resultando evidente que um dos eixos da sua obra é a ineludível e dramática problematização de Deus e da sua relação com o homem, criando uma intrincada rede de respostas, sugestões, hesitações, questionamentos, profissões de fé e abjurações. Nesta comunicação, a partir dos seus textos em prosa, particularmente da dramatização que as suas biografias e autobiografias oferecem, procurar-se-á deslindar os traços do pensamento religioso de Pascoaes. Neste movimento, destrinçar-se-á o modo como rejeitou, aceitou e transfigurou a tradição da ortodoxia católica em que foi educado, como desenvolveu concepções heterodoxas, e ainda a forma cautelosa com que o leitor de Pascoaes deverá usar categorizações como niilismo, panteísmo, gnosticismo ou cristianismo em relação à sua obra.
JOSÉ CARLOS LOPES DE MIRANDA: "Ser eu, perpetuamente; implicação alegórica da soteriologia cristã no 'D. Carlos' de Pascoais."
JOÃO PEDRO CAMBADO: "O problema religioso em Teixeira de Pascoaes: traços de ortodoxia e heterodoxia."
Se o problema religioso é “o único problema” (O Homem Universal), é, porém, certo que Teixeira de Pascoaes não apresentou uma resposta única, e muito menos unívoca, para o mesmo, resultando evidente que um dos eixos da sua obra é a ineludível e dramática problematização de Deus e da sua relação com o homem, criando uma intrincada rede de respostas, sugestões, hesitações, questionamentos, profissões de fé e abjurações. Nesta comunicação, a partir dos seus textos em prosa, particularmente da dramatização que as suas biografias e autobiografias oferecem, procurar-se-á deslindar os traços do pensamento religioso de Pascoaes. Neste movimento, destrinçar-se-á o modo como rejeitou, aceitou e transfigurou a tradição da ortodoxia católica em que foi educado, como desenvolveu concepções heterodoxas, e ainda a forma cautelosa com que o leitor de Pascoaes deverá usar categorizações como niilismo, panteísmo, gnosticismo ou cristianismo em relação à sua obra.
JOSÉ CARLOS LOPES DE MIRANDA: "Ser eu, perpetuamente; implicação alegórica da soteriologia cristã no 'D. Carlos' de Pascoais."
JORGE CROCE RIVERA: "Teorese da Subjectividade, Sentido Cósmico e Dizer da Verdade."
Atravessa o percurso meditativo de José Marinho (1904-75) um contínuo diálogo com a poética de Teixeira de Pascoaes, desde o juvenil “Ensaio sobre a Obra de Teixeira de Pascoaes”, dissertação de licenciatura concluída em 1925 sob auspícios de Leonardo Coimbra, ao projecto de livro, deixado inacabado, “Teixeira de Pascoaes, Poeta das Origens e da Saudade” , desenvolvido entre 1949 e 51, influindo decisivamente na elaboração da sua obra maior, a Teoria do Ser e da Verdade (1961). Recorrendo a textos publicados ou retirados do espólio do filósofo, procuraremos mostrar a importância que teve, não apenas o alcance visionário da poética de Pascoaes para a meontologia de Marinho, a concepção de “Deus como único Ateu” ou a “criptogâmica das sombras”, mas, em particular, o influxo das biografias que Pascoaes redigiu para a tematização da noção de “subjectividade” proposta na Teoria: “(…) o poeta que vai agora sondar os segredos profundos das almas dos santos, dos heróis ou do homem inspirado para ficar ligado ao que do sentido cósmico se lhe revelara.” É a presença do “sentido cósmico” que permitiu ao filósofo aprofundar a distinção entre “interioridade” e “subjectividade“, descobrindo-se esta como o próprio espírito, mas espírito que interroga a perturbação do que se revelara, ou, já nos termos especulativos de Marinho, espírito que é interrogação da alteração do “ser da visão unívoca”. Num
segundo momento, intentaremos amplificar o alcance desta teorese da
subjectividade para a discussão da visão contemporânea do “mundo como texto”, colocando
em diálogo, por um lado, o pensamento de Marinho, atentando neste à diferença
entre “interioridade” e “subjectividade” e à compreensão do espírito como
identidade interrogativa, com, por outro, a reflexão de Paul Ricoeur,
tomando em consideração nesta a distinção entre “mêmete” e de “ipseité”
e do sujeito como identidade narrativa. Ressaltarão desse debate afinidades e
contrastes, seja nos procedimentos que emergem da hermenêutica dos textos enquanto
modos de dizer da verdade, seja nas exigências éticas que esse dizer coloca a
cada um dos pensadores - e aos seus actuais intérpretes.
JORGE TEIXEIRA DA CUNHA: "O São Paulo à luz da teologia de ontem e de hoje."
Teixeira de Pascoaes faz uma apropriação muito particular do
fenómeno cristão no seu S. Paulo.
Queremos descrever, com justeza e justiça, essa apropriação e fazer um juízo
sobre a recepção teológica dessa obra incontornável, ontem e hoje.
JOSÉ ALMEIDA: "Da montanha sagrada de Pascoaes ao esfíngico deserto de Napoleão."
O género biográfico constitui em
Pascoaes um marco de viragem na sua obra. Longe de cultivarem um estilo
meramente “histórico” e “periférico”, as suas biografias desvelam universos
interiores e almas que deambulam pelo mundo enquanto parte de uma grande
procissão cósmica. Nascidas da sua preocupação com a instrução do povo
português, procurando dar a conhecer um conjunto de figuras incontornáveis da
história da humanidade, as biografias pascoalinas alcançaram pouco eco em
Portugal, acabando antes por projectar o autor amarantino além-fronteiras levando-o,
inclusivamente, a ser proposto a Prémio Nobel.
Do conjunto dessas obras
biográficas há uma que se revela, claramente, descontextualizada – "Napoleão”. Publicado em 1940, este
trabalho contrasta não só com as restantes biografias, como choca com grande
parte da produção do nosso poeta e pensador. Esse aparente antagonismo face
àquelas que consideramos as principais linhas de força do seu pensamento
impõe-nos uma hermenêutica atenta dessa obra, exaltadora da controversa figura
de Napoleão Bonaparte, definida por Pascoaes como “a sombra do Anticristo”. Importa
deste modo percebermos se a obra “Napoleão”
reflecte a inversão do conceito de sacralidade patente no
seu legado, ou se a mesma regista uma mera incursão por territórios situados
para lá das fronteiras compreendidas entre o bem e o mal.
JOSÉ ANTÓNIO ALVES: "A Biografia de nós mesmos através de O Homem Universal de Teixeira de Pascoaes."
A
um Congresso que pretende incidir nas biografias escritas por Teixeira de
Pascoaes, propomos uma comunicação sobre a biografia permanentemente inacabada
por artistas, humanistas, filósofos e cientistas: a biografia de nós mesmos.
Temos a ideia de que todas as biografias, bem como quaisquer outras
investigações humanas, são um esforço narrativo e científico na procura da
biografia maior que é compreender quem é
ou o que é ser humano. A biografia é
uma outra via de autobiografia, porque na vida (conceito que aqui engloba o
mundo e tudo o que nele acontece) só nós
mesmos nos interessa. Olhe-se para o objeto dos diferentes cursos que
compõem as nossas universidades, quantos se preocupam com assuntos cujo objeto
é a natureza exterior ao ser humano? Manuel Curado (em 2011) fez o levantamento
do catálogo e a resposta é eventualmente surpreendente. As universidades do
mundo inteiro possuem um reduzidíssimo número de cursos sobre a natureza,
quando comparado ao número de cursos cujo objeto de estudo é o ser humano. O
assunto intelectual verdadeiramente relevante é a investigação do ser humano. A
arte, as humanidades, os filósofos e os cientistas interrogam-se
continuadamente sobre os mistérios do que é ser humano.
Teixeira de Pascoaes, quer sob a forma poética, quer sob a forma narrativa, quer sob a forma aforística, quer sob a forma literário-filosófica, não foi exceção. A obra pascoalina é uma constante indagação antropológica. Até a natureza, musa dos seus pensamentos, foi para si simples espelho do ser humano. O poeta amarantino não descobriu, na paisagem que contemplava da janela do seu solar, rochas e minerais, árvores e vegetais... Em tudo ele viu simplesmente tristezas e alegrias, certezas e incertezas, harmonia e angústia, humanas... A natureza foi a personificação do ser humano que tanto o poeta e filósofo procurou compreender. Disse: «Avisto sempre, na paisagem, uma forma concreta ou revelada e outra, a revelar-se vagamente. É assim o nosso rosto: um desenho e um esboço, a imagem definida a indefinir-se numa expressão misteriosa» (Pascoaes, 1937: 9). Obviamente as biografias que o autor de Gatão escreveu são uma das faces mais visíveis da sua busca antropológica. Em todas ele procurou o homem universal, a essência do ser humano. No entanto, em O Homem Universal, o Zaratustra do Marão propõe apresentar a síntese do seu pensamento e, interpretamos nós, escreve Pascoaes a sua melhor biografia do que é ser humano. Neste livro o autor amarantino não escreve a biografia de São Paulo, de Napoleão, Santo Agostinho, ..., escreve a síntese de todas as biografias que escreveu e havia de escrever. A biografia do Homem Universal. O livro que Pascoaes escreveu em 1937 é um dos seus esforço principais para nos oferecer a sua resposta sobre o que é ser humano.
Esforço
similar procurámos nós na comunicação que propomos ao Congresso. Através do
auxílio e hermenêutica de O Homem
Universal pretendemos, assim, juntamente procurar a biografia que é, na
verdade, autobiografia: a autobiografia do ser humano. Metaforicamente, dizemos
que olhamos para fora, mas para compreendermos para dentro. Descrevemos
paisagens para melhor compreendermos as paisagens do nosso corpo; descrevemos
vidas para melhor compreendermos a nossa vida; descrevemos trovoadas para
melhor compreendermos a nossa psicologia e espírito. Pintamos, narramos,
sentimos, escutamos, filosofamos, calculamos, observamos, para melhor
compreendermos quem somos. Pois não possuímos outro modo de nos compreender
senão através dos nossos próprios meios, que o mesmo é dizer através da escrita
multimoda da autobiografia humana. Esta autobiografia é produto da consciência
e autoconsciência do ser humano. Não possuímos outra via de descoberta ou
construção da realidade. «O destino do homem é ser a consciência do Universo»
(Pascoaes, 1937: 8). Tudo o que sentimos, fazemos, acontece é valorização da
consciência humana. De modo que incontestavelmente a biografia do ser humano
passa obrigatoriamente pela autobiografia da consciência humana.
Na
escrita da autobiografia (da consciência) humana, no argumento da comunicação,
colocaremos em diálogo a perspectiva do poeta-filósofo, avessa a conceitos
puramente científicos, com a perspectiva filosófico-científica que tem dominado
a agenda intelectual internacional sobre o assunto, pelo menos, nas últimas
seis décadas. A perspectiva de que será possível, muito brevemente, escrever a
totalidade da autobiografia humana através da descodificação lógico-matemática
da mente humana e, por conseguinte, também da consciência humana. Esperamos com
este confronto elucidar criticamente a posição e pensamento de Teixeira de
Pascoaes sobre o que é ser humano e, simultaneamente, confrontar a agenda
filosófico-científica contemporânea com a ideia pascoalina de que «a essência
das coisas ... é de natureza poética e não científica» (Pascoaes, 1937: 10).
JOSÉ EDUARDO FRANCO: "As biografias como heterónimos dos eus reencontrados."
JOSÉ ROSA: "'Entre a escada e ruela há um desacordo tremendo...'"
«Nasci para flagelar os Santos.» É assim que Pascoaes começa
a sua curiosa ‘Biografia’ Santo Agostinho
(Comentários). Devo confessar que, quando a li pela primeira vez, esperando
encontrar nela a “hagiografia comum” e piedosa referida por Pinharanda Gomes,
na Introdução à obra (p.10), e que teria
sido o propósito com que alguns leitores a haviam comprado, em 1944 (três anos
depois da primeira tradução portuguesa das Confissões
de Agostinho, e ano em que foram publicadas também a “pequenas confissões” do Santo pecador: os Solilóquios), me senti também
inteiramente visado. Lidas ainda não muitas páginas, interrogava-me já sobre
esta leitura inesperada, estranha, oblíqua, vieses de torturador experiente e
requintado que sabe exactamente encontrar os pontos fracos da vítima nos
lugares mais inesperados. E que o carrasco-poeta só pode saber que é ali mesmo,
naquela incisão minuciosa onde outros não tacteariam, por ser também ele torturada
alma irmã gémea do torturado. Confesso que demorei algum tempo até encontrar o
que me parece ser o princípio hermenêutico das biografias pascoalinas: não são
os textos que importam. A seta directa que vai do coração de Pascoaes ao de
Paulo, de Jerónimo ou de Agostinho não é aquilo que eles disseram, ou que
outros deles afirmaram, ou o que ainda outros disserem (sobre o) que todos
falaram, etc.. Quando se diz alguma coisa, mormente quem escreve umas Confissões, cria-se sempre zonas de
sombra precisamente por se lançar luz noutras. É nessa penumbra que é preciso
procurar, nos interstícios do texto, no hipotexto, nos seus silêncios, hesitações,
aporias, pretextos; naquilo que o penitente não diz que disse, nem desdisse. Então
compreende-se que é a mesma condição humana confrontada com dramas existenciais
semelhantes (“o mal parecia brotar da minha substância!”, confessa Agostinho no
rescaldo do roubo das pêras), com as
mesmas interrogações humanas, religiosas, filosóficas, aquilo que aproxima
Teixeira de Pascoaes dos seus biografados. O cor inquietum das faldas do Marão não é um hermeneuta qualquer.
Querer chegar a Agostinho como que prescindindo da mediação textual ou, quiçá,
até “apesar dos textos” (e como isto tem de ser levado a sério nas Confissões!) é uma tarefa delicada.
Requer a tradução mais difícil, segundo o Pe. António Vieira: a tradução dos
corações. Mas puderam-se traduzir os corações!?
A biografia Santo
Agostinho traduz o encontro de duas almas gnóstico-maniqueias: uma, a do
Bispo de Hipona, a querer-se resgatada dos “contos de fadas persas” pela escada
de Jacob, a Graça divina, apesar das palavras de Juliano de Eclana: “Agostinho,
nunca terás as mãos limpas dos mistérios de Manés!”; a outra, completamente sorvida
pelo indómito Maranus, empapada no pagus, rezando e praguejando de profundis, na lama da rua e das
vielas, para que a Luz chegue ― «Vivi sempre fora dos cânones, em plena
liberdade e selvageria” (Pascoaes em carta a Susanne Jusse). É por estas encruzilhadas de Deus e do Diabo, como
diria outro poeta torturado(r) bem nosso conhecido, que queremos surpreender o
encontro de Pascoaes com Agostinho. Mas para isso precisaríamos também nós de
coração que se traduzisse com os
deles. E tal não está inteiramente na nossa mão.
LUÍS MACHADO DE ABREU: "Pascoaes: A Escrita do Outro Laboratório do Eu."
Todas as biografias
concebidas por Pascoaes cumprem o desígnio de “elucidar” o pensamento da sua
obra, conforme declara no prólogo de O
Homem Universal. Aí revela as coordenadas da forma mentis que presidem à criação literária: declinar a vida, o
drama da vida e o seu actor, o alcance religioso desse drama.
Esta comunicação tenta
desatar algumas das linhas que fazem o enredo biográfico de grandes figuras nas
quais o biógrafo inscreve a sua própria autognose. Devora todos esses seres
superiores o mesmo ontológico “desejo em tensão incandescente”. Através do
drama do outro, o autor sonda o seu mais íntimo enigma que tenta dizer de modo
paradoxal, oximórico. Em luta contra a insuficiência das palavras, Pascoaes
inventa-se a confraternizar com os seus heróis, prisioneiro nas malhas do que
designa como “ateoteísmo”.
Muito mais do que uma
experiência de perda, a tensão ansiosa do poeta-biógrafo exprime a consciência
do sem limite da distância que o separa de si mesmo e do homem universal.
LUÍSA BORGES: "Pascoaes biógrafo da saudade: Je est un(e) autre."
A partir de 1924, num período que se estenderá até 1934, Pascoaes dedica-se à revisão da sua obra poética. A publicação começará em 1931. Em 1934 e 1945, publicará os seus mais significativos textos em prosa. Entre 34 e 37, São Paulo, Painel, São Jerónimo e a Trovoada e o Homem Universal; em 1940, Napoleão; em 1942, o Penitente… e Duplo Passeio e, finalmente, em 1945, Santo Agostinho. Os seus últimos anos são ainda extremamente produtivos. Em 1949 publica Versos Pobres, regressando à poesia em verso, em 1950 com O Empecido; em 1951, dois Jornalistas e Calvário. De 1950 a 52, durante os últimos dois anos da sua vida, realizará algumas significativas conferências, como, sobretudo “Pró Paz” e “Da Saudade”.
Durante onze anos, Pascoaes dedica-se quase exclusivamente à prosa das biografias. Neste período de tempo estão incluídos, como já vimos, O Homem Universal, de 1937 e Duplo Passeio, de 1942. Pascoaes refere-se a São Paulo como sendo o seu “Credo”, na conferência “João Lúcio” ( Pascoaes, 1988:224). A chave para o entendimento e a interpretação da obra de Pascoaes pode encontrar-se cifrada nestes onze anos da sua actividade literária, inteiramente consagrados à prosa. Pelo menos sabemos que não foram publicados livros de poesia em verso durante este período. Cremos que as obras em prosa das biografias, das quais destacaremos as três biografias consagradas aos santos, se encontram na continuidade directa das obras de poesia em verso, iluminando, significativamente, poemas como Jesus e Pã. As biografias de santos são o fecho da obra de Pascoaes ou o centro para onde tendem todos os arcos. As três personagens centrais das biografias que lhes dão os títulos são de tal forma capitais que o poeta constantemente lhe faz referências noutros textos. Assim, são frequentes as alusões aos biografados nos livros que lhes não são directamente consagrados ou, por exemplo, em algumas conferências.
Passamos a enumerar e a desenvolver, de forma necessariamente breve, alguns temas centrais das biografias. Importa também salientar que muitos destes temas já se encontram presentes, por exemplo, em O Génio Português na sua Expressão Filosófica, Poética e Religiosa, opúsculo de 1913 que contém o texto da conferência proferida no Centro Comercial do Porto ou no texto da Polémica sobre “O Sentido da Vida”. A religião e a arte são consideradas equivalentes, diluindo-se numa mesma atitude que se traduz sempre num fundamental princípio de excedência, plasmando-se numa vontade demiúrgica de transcensão e de transgressão de limites. À maneira grega, mas também gnóstica, à imagem e semelhança de Deus, dos deuses, também o criador quer ser a criatura, também os velhos deuses querem revestir-se da forma humana, aspirando à mortalidade e à finitude, como o ser humano aspira à imortalidade e à infinitude.
Na sua génese emocional, a criação poética e religiosa têm na sua origem uma alma em processo criativo ou de nascimento ou de excedência. Existe, no entanto uma terrível contradição entre o que fazemos e o que pensamos: o drama de São Paulo ou o de Pascoaes. A alma não é una, segundo Santo Agostinho, ela é um “habitat” (Pascoaes,1995: 146) de “espíritos” (Pascoaes,1995:153). A alma ou o princípio criador encerra em si mesma uma multiplicidade de seres psíquicos ou de outras almas que se caracterizam pela contradição constante. A filosofia prefigurada pelo cogito ergo sum cartesiano e a religião – que lhe corresponde – plasmada pelo “Eu jeovesco” (Pascoaes, 1995: 273), enquanto interpretações masculinas da alma, são homologadas num mesmo princípio de individuação, ou de tentativa de unidade fictícia da consciência: a sujeição da alma (ou da diversidade da fauna psíquica assim designada) e da natureza a um espírito prefigurado pela predicação agostiniana ou católica de Deus. As três biografias são revisitações ou reflexões em torno do cristianismo enquanto pedra angular ou igreja construída, na sua versão católica, e correspondem às suas três idades: o nascimento , maternidade ou origem (S. Paulo e a entrega incondicional, as perseguições e martírios – a imitação da Virgem); o crescimento e institucionalização (S. Jerónimo e o estabelecimento do cânone face às “heresias”), a cristalização, as contradições insanáveis ou o términos (Santo Agostinho).
São Paulo, São Jerónimo e Santo Agostinho são meditações complexas sobre o princípio da autoria literária ou demiúrgica, a partir daquilo que Pascoaes identifica como sendo a sua sede original: a alma. Na verdade, o drama de uma alma em busca de si mesma, (Feijó, 1992)- quer a queiramos considerar como sendo a de cada um dos biografados, de todos ou do próprio Pascoaes ( por um complexo jogo de anamorfoses) – é, parece-nos, a personagem central das biografias. Através do processo narrativo das biografias, a Saudade, alma feminina e ibérica, arquétipo maternal (também ela, como São Paulo ou a Igreja, Mãe sobrenatural) da escrita das biografias surge, mais uma vez como centro e personagem central. A Saudade nas biografias surge como uma hagiografia de uma face feminina para Deus.
Obras de referência:
BORGES, Luísa, 2005, O Lugar de Pascoaes, Epifanias da Saudade Revelada, Caixotim, Porto.
PASCOAES, 1984, São Paulo, apresentação de António-Pedro Vasconcelos, Assírio & Alvim, Lisboa.
, 1992, São Jerónimo e a Trovada, Introdução de António Feijó, Assírio & Alvim, Lisboa.
, 1995, Santo Agostinho (Comentários), fixação do texto, introdução e notas de Pinharanda Gomes, Assírio & Alvim, Lisboa.
A partir de 1924, num período que se estenderá até 1934, Pascoaes dedica-se à revisão da sua obra poética. A publicação começará em 1931. Em 1934 e 1945, publicará os seus mais significativos textos em prosa. Entre 34 e 37, São Paulo, Painel, São Jerónimo e a Trovoada e o Homem Universal; em 1940, Napoleão; em 1942, o Penitente… e Duplo Passeio e, finalmente, em 1945, Santo Agostinho. Os seus últimos anos são ainda extremamente produtivos. Em 1949 publica Versos Pobres, regressando à poesia em verso, em 1950 com O Empecido; em 1951, dois Jornalistas e Calvário. De 1950 a 52, durante os últimos dois anos da sua vida, realizará algumas significativas conferências, como, sobretudo “Pró Paz” e “Da Saudade”.
Durante onze anos, Pascoaes dedica-se quase exclusivamente à prosa das biografias. Neste período de tempo estão incluídos, como já vimos, O Homem Universal, de 1937 e Duplo Passeio, de 1942. Pascoaes refere-se a São Paulo como sendo o seu “Credo”, na conferência “João Lúcio” ( Pascoaes, 1988:224). A chave para o entendimento e a interpretação da obra de Pascoaes pode encontrar-se cifrada nestes onze anos da sua actividade literária, inteiramente consagrados à prosa. Pelo menos sabemos que não foram publicados livros de poesia em verso durante este período. Cremos que as obras em prosa das biografias, das quais destacaremos as três biografias consagradas aos santos, se encontram na continuidade directa das obras de poesia em verso, iluminando, significativamente, poemas como Jesus e Pã. As biografias de santos são o fecho da obra de Pascoaes ou o centro para onde tendem todos os arcos. As três personagens centrais das biografias que lhes dão os títulos são de tal forma capitais que o poeta constantemente lhe faz referências noutros textos. Assim, são frequentes as alusões aos biografados nos livros que lhes não são directamente consagrados ou, por exemplo, em algumas conferências.
Passamos a enumerar e a desenvolver, de forma necessariamente breve, alguns temas centrais das biografias. Importa também salientar que muitos destes temas já se encontram presentes, por exemplo, em O Génio Português na sua Expressão Filosófica, Poética e Religiosa, opúsculo de 1913 que contém o texto da conferência proferida no Centro Comercial do Porto ou no texto da Polémica sobre “O Sentido da Vida”. A religião e a arte são consideradas equivalentes, diluindo-se numa mesma atitude que se traduz sempre num fundamental princípio de excedência, plasmando-se numa vontade demiúrgica de transcensão e de transgressão de limites. À maneira grega, mas também gnóstica, à imagem e semelhança de Deus, dos deuses, também o criador quer ser a criatura, também os velhos deuses querem revestir-se da forma humana, aspirando à mortalidade e à finitude, como o ser humano aspira à imortalidade e à infinitude.
Na sua génese emocional, a criação poética e religiosa têm na sua origem uma alma em processo criativo ou de nascimento ou de excedência. Existe, no entanto uma terrível contradição entre o que fazemos e o que pensamos: o drama de São Paulo ou o de Pascoaes. A alma não é una, segundo Santo Agostinho, ela é um “habitat” (Pascoaes,1995: 146) de “espíritos” (Pascoaes,1995:153). A alma ou o princípio criador encerra em si mesma uma multiplicidade de seres psíquicos ou de outras almas que se caracterizam pela contradição constante. A filosofia prefigurada pelo cogito ergo sum cartesiano e a religião – que lhe corresponde – plasmada pelo “Eu jeovesco” (Pascoaes, 1995: 273), enquanto interpretações masculinas da alma, são homologadas num mesmo princípio de individuação, ou de tentativa de unidade fictícia da consciência: a sujeição da alma (ou da diversidade da fauna psíquica assim designada) e da natureza a um espírito prefigurado pela predicação agostiniana ou católica de Deus. As três biografias são revisitações ou reflexões em torno do cristianismo enquanto pedra angular ou igreja construída, na sua versão católica, e correspondem às suas três idades: o nascimento , maternidade ou origem (S. Paulo e a entrega incondicional, as perseguições e martírios – a imitação da Virgem); o crescimento e institucionalização (S. Jerónimo e o estabelecimento do cânone face às “heresias”), a cristalização, as contradições insanáveis ou o términos (Santo Agostinho).
São Paulo, São Jerónimo e Santo Agostinho são meditações complexas sobre o princípio da autoria literária ou demiúrgica, a partir daquilo que Pascoaes identifica como sendo a sua sede original: a alma. Na verdade, o drama de uma alma em busca de si mesma, (Feijó, 1992)- quer a queiramos considerar como sendo a de cada um dos biografados, de todos ou do próprio Pascoaes ( por um complexo jogo de anamorfoses) – é, parece-nos, a personagem central das biografias. Através do processo narrativo das biografias, a Saudade, alma feminina e ibérica, arquétipo maternal (também ela, como São Paulo ou a Igreja, Mãe sobrenatural) da escrita das biografias surge, mais uma vez como centro e personagem central. A Saudade nas biografias surge como uma hagiografia de uma face feminina para Deus.
Obras de referência:
BORGES, Luísa, 2005, O Lugar de Pascoaes, Epifanias da Saudade Revelada, Caixotim, Porto.
PASCOAES, 1984, São Paulo, apresentação de António-Pedro Vasconcelos, Assírio & Alvim, Lisboa.
, 1992, São Jerónimo e a Trovada, Introdução de António Feijó, Assírio & Alvim, Lisboa.
, 1995, Santo Agostinho (Comentários), fixação do texto, introdução e notas de Pinharanda Gomes, Assírio & Alvim, Lisboa.
LUIZ PIRES DOS REYS:
"Da biografia como
focado exercício de desfoque em modo de auto-refracção: o incontornável
efeito ‘selfie’ no género [auto]biográfico."
MANUEL CÂNDIDO PIMENTEL: "Leitura de Leonardo Coimbra sobre o São Paulo de Teixira de Pascoaes: aproximações e divergências."
MANUEL FERREIRA PATRÍCIO: "Deambulando pelo mundo espectral vivo do Livro de Memórias, o ninho da Saudade."
Pretende-se percorrer
algumas pistas e trilhos diversos que se apresentam ao pensar, exercido em
condição tentadamente indomesticada, quanto ao carácter quase sempre
auto-mistificante do género biográfico, e de como o espelho (mágico ou
imaginário) que um tal labor constitui é incontornavelmente photomaton em
negativo do que se quer ver de si nos outros (biografia) ou do que não se quer
ver dos outros em si (auto-biografia).
MANUEL CÂNDIDO PIMENTEL: "Leitura de Leonardo Coimbra sobre o São Paulo de Teixira de Pascoaes: aproximações e divergências."
MANUEL FERREIRA PATRÍCIO: "Deambulando pelo mundo espectral vivo do Livro de Memórias, o ninho da Saudade."
Que se pode dizer sobre o Livro de Memórias? Que esse Livro só se pode olhar: ir olhando... ir deambulando nele para penetrar nele... e olhá-lo... e vê-lo. Devagarosamente, palavra da feliz invenção de Herberto Helder. Essa deambulação vai-se revelando ser uma transfiguração. O Livro de Memórias está povoadíssimo de seres que foram vivos e morreram, que estiveram e partiram, que morreram e estão vivos lá no mundo espectral onde estão, que partiram e estão presentes com um poder de ser superior ao não-ser da morte. Perante este impressionante poder só se impõe praticar o silêncio, só o silêncio fala com suficiente ser, que é o ser do olhar, do sentir e do pensar - a fundo!... - a vida e a morte, a morte e a vida, aquele mundo prodigioso do trans, d'o que é para além e aquém de ser, de viver, de morrer. Deve ser esse o mundo da vida, da vida real, autêntica. Eis porque me aparece inadequado qualquer discurso pretensamente lógico, argumentativo, racional, sobre o Livro de Memórias. Vamos andando, vamos olhando, vamos vendo, vamos deixando que a Memória desfolhe memórias. É um Livro. Tem um autor: Pascoaes. O autor é ele. O Livro de Memórias não é escrito por heterónimo(s). Heterónimo será o mundo (espectral) que a Memória dá nas memórias que dela recebe Pascoaes.
Irei recolhendo na mão as memórias mais pungentes, mais imponentes, mais luminosas. Olharei para elas até ao mais fundo que me for possível, ou que elas quiserem, com o intuito de ir apanhando a vida, a biografia, de Pascoaes mostrada pelo próprio. Nas seis partes do Livro vejo seis dias sagrados da vida, cinco mais um. Cada dia é um teatro, onde se mostra o que foi acontecendo a Pascoaes. O sexto dia é destinado a concluir, com a visão de que afinal o Residente secreto do Livro de Memórias é a Saudade. O Livro de Memórias é o seu ninho criador, genesíaco.
MARIA DE LOURDES SIRGADO GANHO: "Existir e Ser na biografia sobre Santo Agostinho de Teixeira de Pascoaes."
A última
biografia do poeta de Marânus é, como
sempre, um diálogo entre si próprio e Santo Agostinho. Biografia passada pelo
crivo das suas preocupações, bem como interpelações e perplexidades. Como
refere, “Agostinho foi um inspirado e um iluminado”, tal afirmação é central
porquanto nos dá acesso à sua forma de interpretar, romanceando, mas em que a
existência, na multiplicidade das suas manifestações, palpitante e atormentada,
se apresenta sempre marcada pela nostalgia de um absoluto de ser. Por isso,
existir e ser na sua articulação, serão os conceitos que possibilitam desvendar
o modo como Teixeira de Pascoais interpreta esse génio do cristianismo, figura
singular, complexa, um converso que lê a
realidade humana em chave cristológica. Mas, de forma especular, Santo
Agostinho é poeta, filósofo, racionalista, e homem em que o coração dita também
as suas leis, tem o dom da palavra mas abre-se ao mistério de ser, anelando à
união mística com Deus. E interrogamo-nos: será o encontro de duas almas que
aqui se desenha em filigrana, inquietas, em que o Absoluto é desejado nos
píncaros do amor?
MARTINHO SOARES: "Misticismo e hagiografia em Tiago Veiga: o encontro com Teixeira de Pascoaes."
MARISA DAS NEVES HENRIQUES: "Dos múltiplos calígrafos sibilinos que compõem
as personagens da Trilogia da Mão."
A Trilogia da Mão de Mário Cláudio é um
extraordinário exemplo da biografia como (pro)vocação e derrisória forma de
estabelecer errâncias entre factos, afetos, história e estórias, imaginação e
memória. O percurso aqui proposto assenta num gesto que tem tanto de físico –
caligráfico – como de simbólico, e compreende a desmultiplicação de olhares e
de versões que (re)constroem a sobrevida ficcional das três personagens
principais deste tríptico. De que forma se entretecem as malhas que fazem
nascer um processo romanesco assente em figuras históricas com afinidades, mas
também com enormes diferenças entre si? Que efeitos hermenêuticos se podem
extrair da publicação de cada romance isoladamente até à sua reunião num só
volume, numa quase inevitável ordenação de sentido ascendente? O autor e os seus narradores encenam
um relato polifónico, a várias mãos, que ora se enlaçam e deslaçam com as de
Amadeo, Guilhermina e Rosa. Ora é justamente na problematização desta linha
ténue entre vida, biografia e romance que tentaremos deixar o nosso modesto
contributo no âmbito do Colóquio Internacional As Biografias do Pensamento Português.
MARTINHO SOARES: "Misticismo e hagiografia em Tiago Veiga: o encontro com Teixeira de Pascoaes."
A monumental biografia que Mário Cláudio devota ao
misterioso e arredio Tiago Veiga revela-nos um escritor refratário aos
demiurgos poéticos que campearam no centro do campo literário luso no decurso
do século XX. Pautando a sua escrita críptica, gnómica, e fortemente
simbolizada pela clave do misticismo evanescente do imaginário católico, é aos
escritores anglo-saxões (Yeats, Sitwell, Pound) que se encontra primordialmente
irmanado. No contexto nacional, merece exceção, pela proclive afinidade
ideológico-vivencial, um outro vate nortenho, igualmente dado a solitária
clausura, trilhando um caminho poético original e indiferente às vigências e
intrigas literárias da nação. O encontro de Tiago Veiga com Teixeira de
Pascoaes numa esplanada do Porto revela-se axial na diacronia da produção
místico-literária do biografado por Mário Cláudio: coincide com essa
determinação de Veiga em explorar territórios e gramáticas impalpáveis; e com o
início da redação do drama poético Triunfo
e Glória do Arcanjo São Miguel de Portugal, para cuja trama fornece
Teixeira de Pascoaes o retrato pictórico e semântico do ambíguo e
deuterocanónico protagonista. Não mais se voltam a sentar à mesma mesa, mas
mantém-se a empatia que leva Veiga a evocar esparsamente Pascoaes como vaga inspiração
das letras lusas e com admiração.
Nesta
comunicação pretendemos demonstrar a formação e evolução do gosto hagiográfico
de Tiago Veiga, remetendo aos títulos bibliográficos, aos escassos trechos transcritos
e aos testemunhos parafrásticos do biógrafo; a influência de Pascoaes; e o
contraste entre o pendor místico-mediúnico de ambos os autores, glosando em
torno da hagiografia como síntese da tensão entre espírito e matéria em
Pascoaes e entre afetividade e misticismo em Veiga.
MENDO DE CASTRO HENRIQUES: "Pessoa e Pascoaes: dois cegos homéricos."
No âmbito da cultura portuguesa do primeiro terço do séc. XX, Pessoa e Pascoais bem podem ser considerados dois cegos homéricos. O enigma que se esconde por detrás do nome de Homero, alegadamente cego, não é a autoria de uma obra literária, mas a criação de símbolos que exprimem a existência humana em convívio com o sagrado, por entre a desordem e o declínio histórico de uma sociedade ... Mas nesse período de transição da sociedade portuguesa, no final da sua primeira grande experiência liberal, os dois poetas descobriram muito mais do que uma catástrofe política. Na ação e paixão dos seus heróis - míticos e históricos - descobriram o destino sagrado, o elemento de tragédia que permite aos eventos ascenderem ao reino de Mnemósine. Entre esperanças (poucas) e catástrofes (muitas), Pessoa e Pascoais ouviram as suas visões, cegos talvez para os acontecimentos imediatos dos homens, mas profundamente videntes pelo sofrimento que lhes fez crescer a sabedoria e pela experiência das catástrofes que souberam converter em canções.
No âmbito da cultura portuguesa do primeiro terço do séc. XX, Pessoa e Pascoais bem podem ser considerados dois cegos homéricos. O enigma que se esconde por detrás do nome de Homero, alegadamente cego, não é a autoria de uma obra literária, mas a criação de símbolos que exprimem a existência humana em convívio com o sagrado, por entre a desordem e o declínio histórico de uma sociedade ... Mas nesse período de transição da sociedade portuguesa, no final da sua primeira grande experiência liberal, os dois poetas descobriram muito mais do que uma catástrofe política. Na ação e paixão dos seus heróis - míticos e históricos - descobriram o destino sagrado, o elemento de tragédia que permite aos eventos ascenderem ao reino de Mnemósine. Entre esperanças (poucas) e catástrofes (muitas), Pessoa e Pascoais ouviram as suas visões, cegos talvez para os acontecimentos imediatos dos homens, mas profundamente videntes pelo sofrimento que lhes fez crescer a sabedoria e pela experiência das catástrofes que souberam converter em canções.
MIGUEL REAL: "O
Estatuto Existencial de Napoleão no
Conjunto das Biografias de Teixeira de Pascoaes."
Biografia anti-historicista e anti-positivas, Napoleão sobrevaloriza existencialmente, na configuração das
biografias escritas por Teixeira de Pascoaes, não os aspectos éticos (S.
Jerónimo), não os aspectos místicos (S. Paulo), não os aspectos filosóficos
(Santo Agostinho), não os aspectos penitenciais da existência Camilo Castelo
Branco), mas os aspectos verdadeiramente mundanos da política e do desejo de
glória pessoal como enquadramento prometeico da decadência europeia.
PAULO BORGES: "Infância, pré-existência e saudade no 'Livro de Memórias' de Teixeira de Pascoaes."
PEDRO MARTINS: "O Drama da Convivência: o Santo Agostinho e o pensamento teolibertário de Teixeira de Pascoaes."
PEDRO MARTINS: "O Drama da Convivência: o Santo Agostinho e o pensamento teolibertário de Teixeira de Pascoaes."
A
partir do Santo Agostinho, biografia
(se assim se lhe pode chamar) que se constitui como uma obra maior da
bibliografia de Teixeira de Pascoaes, e em diálogo com outros títulos do autor,
como O Homem Universal e A Minha Cartilha, e com outros nomes do
pensamento português, como, por exemplo, Sampaio Bruno, Jaime Cortesão ou
Agostinho da Silva, procura-se nesta comunicação surpreender o modo como o vate
de Gatão aborda e equaciona os valores da tríade Liberdade-Igualdade-Fraternidade na fase final da sua obra, cujo
marco inaugural se estabelece com a edição de São Paulo.
PAULO SAMUEL: "Do alter-ego à psicografia biográfica: Pascoaes e o retrato de Camilo"
Os estudos pascoaesianos, salvo alguns raros mas conhecidos contributos ensaísticos, pouco atenderam ao longo do século XX à produção literária pascoaesiana centrada nas heterodoxas “hagiografias” e biografias apresentadas pelo escritor do Solar de Pascoaes, desde o São Paulo (1934) ao Penitente (Camilo Castelo Branco) (1942). (Outra atenção foi, no entanto, prestada a essa vertente por estudiosos estrangeiros, conforme tem assinalado António Cândido Franco). No âmbito desta participação, pretende-se relevar as marcas do pensamento de Pascoaes na elaboração de um livro tão singular como é O Penitente (Camilo Castelo Branco). Por um lado, num exercício comparatista – não entre duas bases textuais, mas na alternância entre uma matriz que procura distinguir os traços distintivos do génio camiliano e o reflexo, espelhado, da própria compleição poético-ensaística do biógrafo –, por outro, identificando o que na escrita camiliana é apreendido por Pascoaes como tensão existencial do autor, que alicerça na cultura e nos costumes portugueses da época uma certa forma de “redenção” para o drama da sua vivência. Camilo foi para Pascoaes um “autor sagrado”, talvez porque também o autor da Era Lusíada dedicou parte da sua escrita e da reflexão à compreensão de um povo e de uma cultura que sabia eivada de mistério, insuflados ambos por linhas ontológicas que marcam a presença e pervivência das três religiões do “livro”, a que Pascoaes nunca foi indiferente e, hoje, começa a ser entendido na sua total amplitude. Daí que o recorte “biográfico” de Camilo feito por Pascoaes se assuma também como um psicografia feita à luz da singularidade poética do criador do Pobre Tolo, esse outro ser, alter-ego de Pascoaes, que vê nas coisas, mas sobretudo nos seres, a verdadeira essência que os alumia e os guia no trânsito da existência. Camilo e Pascoaes acreditam em Deus “para que Ele exista”, o que os irmana numa incessante e aprofundada busca de sentido para a vida, na qual a Literatura e a Poesia é mais do que a expressão de uma sensibilidade ou de um talento para (re)criar. Transmutam a “queda” adâmica numa “queda” para viveram o sofrimento alheio, que é também o deles, pelo qual procuram restaurar o retorno a um tempo em que a dor e a vertigem do tempo se sustêm para revelar o que de mais profundo há na aventura humana, que neles nunca é demasiado humano, porque passível de dimensão sobreumana. Mais do que uma dualidade, esse bifrontismo tão característico de algumas personagens camilianas (retrato, decerto, da própria idiossincrasia de Camilo), o que importa ver é a complementaridade que transforma um azorrague do Palheiro e dos “brasileiros” da época, num “místico ibérico” que sabe que “a ideia da morte apura o sentimento do amor”… Dentro dessa leitura, Pôde Teixeira de Pascoaes escrever que o drama de Camilo “deriva da contradição do seu temperamento, ascético e libidinoso, poético e prosaico: duas tendências, tão confundidas, que ele, compondo versos, é prosador e, escrevendo prosa, é poeta”. Finalmente, esta aproximação quer também estabelecer algumas afinidades de ordem literária e até doutrinal entre a “biografia” dedicada por Pascoaes a Camilo Castelo Branco e os verbetes que dedicou a outros autores, de poesia e prosa, em Os Poetas Lusíadas (1919), livro escrito ao tempo da «Renascença Portuguesa» e da maior projecção do ideário Saudosista.
PEDRO VISTAS: "Da especular exemplaridade do Poeta - Reflexões a partir de O Penitente."
RENATO EPIFÂNIO: "As Biografias de Agostinho da Silva."
O que têm em comum as 14 figuras que Agostinho da Silva biografou na sua série de “Vidas de Homens Célebres”: Moisés, Francisco de Assis, Leonardo da Vinci, Miguel Ângelo, William Penn, Pestalozzi, Franklin, Washington, Leopardi, Lamennais, Lincoln, Pasteur e Zola?Aparentemente, nada. À parte terem sido, de uma forma ou de outra, figuras marcantes na sua época. À parte disso, nada, ou muito pouco. É um facto que muitas delas poderão ser consideradas figuras “libertárias”, ou seja, figuras que defenderam, no seu tempo, mais liberdade – veremos quais –, mas há pelo menos uma que nem tanto: Lamennais (1782-1854), grande defensor do “ultramontanismo”, doutrina política dos católicos franceses que buscava a inspiração na Cúria Romana, defendendo a autoridade absoluta do Papa em matéria de fé e disciplina. O único traço que as une é, tão-só, como veremos, a grandeza de alma e a força de carácter. Foi isso, de resto, o que Agostinho da Silva pretendeu “pôr em relevo”, como ele próprio assumiu numa entrevista a Irene Lisboa a propósito desta série: “uma coisa pretendi pôr em relevo - a vitória do homem sobre o mundo interno e externo. O que há de forte na personalidade humana (…). Eu quis, acima de tudo, dar evidência è feição combativa e vitoriosa de certas vidas.”. Com a relativa excepção de Leopardi – grande escritor, um dos maiores poetas da lírica italiana, mas muito dado à melancolia –, vejamos em que medida isso se verifica, começando, desde logo, pela sua Biografia de Moisés. Como é sabido, Moisés foi aquele que, durante 40 anos (entre 1250 a.C. e 1210 a.C), conduziu o povo de Israel na peregrinação pelo deserto, assim o libertando do jugo egípcio. Na sua Biografia, Agostinho da Silva começa por simpatizar mais com os judeus do que com os egípcios – o que é natural, sendo este o povo opressor e aquele o povo oprimido –, assegurando, inclusive, que “os judeus eram, de facto, mais inteligentes e activos do que os egípcios”. Apesar dessa consideração inicial, as considerações posteriores tendem a esbater essa “superioridade”. Em última instância, a tese que emerge é a de que todos os povos são igualmente fracos - a menos que sejam guiados por um “alto pensamento”. Moisés foi, no caso, esse “alto pensamento”, esse “herói libertador” – ainda que tenha sido um herói relutante. Nas palavras de Agostinho, sentia-se “fraco demais para tarefa tão pesada”. Simplesmente, a sua tarefa era um dever de consciência. E por isso renunciou à sua vida particular – inclusive, ao seu casamento com Séfora –, para se sacrificar ao serviço do seu povo. Sendo Moisés o herói desta saga – com muitas peripécias, descritas minuciosamente na Biografia –, Séfora, sua esposa, aparece-nos como a mais importante personagem secundária – a princípio, no seio das suas irmãs; depois, enquanto paradigma de todas as mulheres – que, alegadamente, deveriam ser “como Séfora, diligentes no trabalho, corajosas e doces, iguais no proceder, animosas e esperançadas nos maus dias, calmas nas festas, moderadas no riso, duras na fadiga e nas delícias.” Curiosamente, o “ideal feminino” é a questão central do texto que se segue: Cinco falas de gente pastoril. Neste, o pastor suspira por uma “companheira que mais guia me será do que eu a ela”. A escolha com que se confronta é entre Lia e Raquel, dois símbolos de Mulher: “[Lia] era bela também, mas era beleza deste mundo, ao passo que a outra [Raquel] era, nos dias de alegria, uma promessa do céu, quando a melancolia vinha fundo uma saudade do céu”. Segundo a fala do Velho, o sábio por excelência, não há, contudo, que escolher entre Raquel e Lia, entre o “sonho” e a “realidade”: “não recuses Lia por amor de Raquel, não afastes de ti Raquel pela posse de Lia. Ama as duas com amor heróico, não separes o real e o sonho”. Mais do que dois símbolos de Mulher, Lia e Raquel simbolizam, pois, os dois planos maiores – e complementares – da existência: o real e o sonho, ou o ideal, o ser e o dever-ser.
ROBERTA FERRAZ: "São Paulo atravessando o desejo ou a biografia como saudade em Pascoaes".
“Há
um oásis no Incerto”
(Fernando
Pessoa / “Episódios – A Múmia”)
Um deserto, um desejo: aridez
e sede que nos atravessam, abertura à beira móvel, ondulações. O rosto do desejo
pode ser pensado como um corpo de areias móveis, com pequenos animais flexíveis
ao sol. O vento, a alma do deserto,
para além do sol, seu esqueleto, não
deixa que fixemos no solo qualquer cartografia. Lidamos com os vestígios,
realidades fulgurantes, saudades.
No canto, poema, voz, o desejo
acende seus rastros: no imaginário de Teixeira de Pascoaes, poeta que
incansavelmente se diz ‘português’ em seu sonho recorrente de ‘descobrir(-se) Portugal’, o deserto
será, em diversas linhas, signo múltiplo do desejo: em primeiro lugar, pelo
sentido profundo de peregrinação e provação, religiosidade e exílio, de origem
Bíblica; depois, pela sua proximidade quase fronteiriça com o território
nacional português, tendo apenas um braço de mar separando um mundo do outro
que se fez árabe; além da geografia próxima, o deserto é desejo pelo areal
denso e profundo onde se guarda o Desejado, D. Sebastião – um dos mitos mais
ardentes da cultura portuguesa. Numa quarta instância, ainda, o mar será sinal
líquido da mesma sina desejante, espécie molhada de seu outro seco. Por tudo
isso e mais, entendemos o areal desértico como espécie de ilha bem-aventurada, em
que Teixeira de Pascoaes encarnará seu verbo
escuro, à maneira do “faminto que transforma em pão a própria fome”, que é
como ele nos apresenta o seu biografado São Paulo.
A forma como Pascoaes encena e
encarna seu périplo da saudade por meio da biografia
de alguns de seus eleitos, no caso São Paulo, é interessantíssima. A
projeção de si numa escrita íntima do
outro a partir de uma deliberada subjetividade autoral acaba por dar à saudade o seu conteúdo complexo,
anulando tempo, espaço, história e qualquer espécie de distância e nitidez,
pois no verbo de Pascoaes “Paulo está vivo e presente” (PASCOAES: 2002, p.23).
A saudade refaz o contato e a perspectiva do ser com as coisas e a escritura da biografia de São Paulo será
mais um exemplo disso, da fusão entre autobiografia, biografia, ontologia, pois
como o diz Pascoaes: “O que há de belo, na criatura, é o ponto em que ela
hesita entre o pessoal e o universal” (2002, p.26).
O real é híbrido e a Saudade é o acesso à
galeria de formas que, em estado de sono, esperam por serem invocadas e
trazidas, poeticamente, ao lume da vida, eterna, atemporal, anônima, coletiva.
O foco na travessia do desejo/deserto, por meio da perspectiva saudosa, garante
ao poeta recursos vocais intermináveis que nos atestam a sua genialidade.
Perdemos o contorno de suas obras enquanto ‘obras avulsas’ e percebemos que
Paulo avulta agora numa página do Livro
de Memórias ou reacende-se n’O pobre
tolo não passando mais do que um espectro de Marânus ou uma fluorescência vista dentro do olho do próprio
Pascoaes enquanto investigava o rio do espelho. De quem é que fala quando
Pascoaes fala em Paulo?
Não lhe importa a história
enquanto documentação oficial e oficiosa: na travessia desejosa do espelho,
Paulo será o deserto de Pascoaes, Pascoaes será o deserto de Paulo, num
desdobramento autoprofético que contagia toda a fulgurante e sombria escrita
pascoaesiana, como se pode ler num trecho de Os poetas lusíadas:
“Condenado que
ignora o seu crime, ele expia tremenda pena, interrogando debalde a noite e o
silêncio eterno que o cerca... Para que nasci? Por que sofro? E quem sou eu?
Vê-se num deserto, abandonado por Alguém
que ele procura e não encontra... Grita, reza e chama em alta voz! Só lhe
responde o eco das suas lágrimas, a sua própria imagem, fantástica e sonora,
sobressaltando os horizontes do mundo... É ele que enche todo o espaço. A sua
existência é tudo e nada.
O Universo é uma
ilusão evidente, em bruto relevo, que nos fere: um sonho cristalizado, em cujas
arestas insensíveis se dilacera a nossa alma. Toda ela sangra de encontro às
suas próprias alucinações materializadas, de encontro à indiferença hostil de
todas as cousas. O homem está crucificado num Calvário. Em torno dele, há
espectros invisíveis que o crivam de invisíveis flechas agudas. O homem está
crucificado num deserto imenso
........................
e vi cheio de horror
Silêncio,
escuridão e nada mais!”
(PASCOAES:
1987, p. 181-182).
RUI SOUSA: "Modelizações do Imaginário Artístico em Teixeira de Pascoaes."
Nesta comunicação procuraremos analisar em que medida as biografias pascoalinas ajudam a construir uma determinada forma de considerar e definir o sujeito artístico, conjugando tópicos como a loucura, a excepcionalidade, o visionarismo, o génio e a marginalidade intrínseca à sua forma de ver, de sentir e de pensar o mundo. Além das biografias de artistas representativos, como Camilo Castelo Branco, teremos também em conta de que modo Pascoaes poderá apresentar-se como um exemplo de Poeta, por exemplo em Livro de Memórias, recorrendo ainda a livros de poesia afins como O Doido e a Morte.
SAMUEL DIMAS: "A loucura do amor de Deus e o mistério da glorificação do corpo em São Paulo de Teixeira de Pascoaes e em São Francisco de Leonardo Coimbra."
São Paulo foi a alma ansiosa que jamais parou, na subida, aquele sim do Amor gritando contra os nãos do egoísmo materialista. Foi a alma-mater de todas as almas, para as quais o Universo sem Deus é um zero tão grande como inútil. Dela descendem os santos e poetas da Loucura: Santo Agostinho, S. Francisco de Assis, Santa Teresa de Ávila, que divinizou o amor humano e Soror Mariana, que humanizou o amor divino[1].
O poeta-filósofo Teixeira de Pascoaes e o filósofo-poeta Leonardo Coimbra partilham o mesmo sentimento misterioso de comunhão espiritual com o mundo natural. Na primeira linha do prefácio da sua obra São Paulo, livro composto não para eruditos que procuram a objetividade científica do reino da certeza, mas para almas ansiosas e poéticas que esperam a luz do reino da Verdade, o poeta do Marão confessa a forma intensa como viveu poeticamente esta intimidade: «As cousas da Natureza tiveram, para mim, grande encanto. Vivi-as, como se vive a dor ou o amor»[2]. Na sua obra S. Francisco de Assis (Visão franciscana da Vida) o filósofo criacionista, na mesma linha de Pascoaes, partilha com o santo da sua biografia a dignidade ontológica da realidade natural e afirma que todas as criaturas são fruto da Graça do Espírito divino: «Mas as próprias obras são concreções da Graça: da Graça suficiente nas criaturas comuns, da Graça superabundante nos eleitos e nos santos»[3]. Considerando que todo o Universo é suspenso da inteligência e vontade divinas e que todos os seres são palavras vivas do Verbo[4], Leonardo Coimbra partilha com o santo de Assis uma boa amizade com a Natureza, considerando-a como vestígio de Deus, e partilha um profundo sentido de caridade, inteligido como socorro do Criador à voz comovida e saudosa do homem[5]. No mesmo sentido, Teixeira de Pascoaes, acrescenta no início da sua biografia que agora o que mais lhe interessa, já não é a natureza, tão nobremente cantada e dolorosamente vivida na obra poética, mas sim as almas de pessoas como, por exemplo, Paulo de Tarso, considerado como o maior poeta da vida e da loucura, faminto de Deus e criador de um mundo novo em que a ação é elevada para as alturas do espírito[6]. É sobre São Paulo e sobre a sua conversão a Cristo, que o poeta se vai entregar nesta obra, realçando que é depois da dor e do calvário, do pecado e do remorso, que os homens se santificam e se elevam à maior altura espiritual[7]. O poeta considera o período de vida de São Paulo que vai do ano da sua conversão, ano 37 da nossa era até ao incêndio de Roma, como o momento mais interessante e verdadeiro do Cristianismo, espontâneo e vivo, anterior aos sistemas teológicos e anterior à organização hierárquica do clero: «Deus, sentimento da Origem e da unidade moral das criaturas: unidade que é um regresso amoroso e consciente à identidade primitiva; Deus, força espiritual humanizada, convertida num ser perfeito e modelar»[8]. Os dois santos, Paulo e Francisco, são denominados de loucos nestas duas biografias. Pascoaes refere-se a São Paulo como genial poeta místico enlouquecido na atividade missionária que o redima da sua ação criminosa de perseguição aos cristãos: «Paulo é a loucura animada perante a razão inerte, a onda nova que submerge o clássico litoral petrificado; uma erupção de forças instintivas e originárias, rompendo uma crosta dura - o primeiro ímpeto romântico. Só a vida excessiva destrói a morte; devora-a e assimila-a»[9]. Leonardo Coimbra refere-se a São Francisco como alma disposta à unção do Espírito Santo, depois de ter passado pela doença e ter pressentido o fantasma da morte, depois de se ter desiludido das suas tentativas de glória mundana. O louco de Assis entrega todos os seus bens à Igreja e despe-se das suas próprias roupas, fazendo da sua missão um testemunho de pobreza e de absoluta entrega ao amor de Deus, deixando a estabilidade e a segurança para acorrerem aos vagabundos do Evangelho: «Começamos a ver que este louco de Assis é como o louco de Tarso, como os mártires de Roma e de Lião, um contagiado da infinita «Loucura da Cruz»[10].
[1] Teixeira de Pascoaes, São Paulo, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002, p, 38.
[2] Ibidem, p. 23. [3] Leonardo Coimbra, S. Francisco de Assis (Visão Franciscana da Vida), Porto, Maranus, 1927, in Obras Completas, vol. VI, Lisboa, INCM, 2010, p. 206 [34].
[4] Cf. ibidem, p. 216 [61].
[5] Cf. ibidem, p. 234 [124].
[6] Cf. Teixeira de Pascoaes, São Paulo, p. 23.
[7] Cf. ibidem, p. 27.
[8] Cf. ibidem, p. 25.
[9] Ibidem, p. 25.
[10] Leonardo Coimbra, S. Francisco de Assis (Visão Franciscana da Vida), in Obras Completas, vol. VI, p. 202 [20].
SOFIA A. CARVALHO: "A vocaçao épica no gesto de excedência: fracturas e passagens do heroísmo homérico ao heroísmo agápico no São Paulo de Teixeira de Pascoaes."
Partindo da afirmação proclamatória e distintiva do gesto de excedência, entendido como expressão iniludível da vocação épica na cosmovisão pascoalina, procurar-se-á, não tanto uma fixação genológica, antes uma reflexão estético-metafísica sobre esse ímpeto de excedência que se encontra no trânsito do finito para o infinito e da inquietude para a disponibilidade amorosa. A ambivalência anagógica entre as figuras do poeta, do santo e do herói, aliadas ao topos estético da loucura e do furor pascoalinos, permitirão o cotejo exegético de passagens e fracturas que, podendo resgatar esse ímpeto de excentricidade, a seu tempo funesta e melancólica, que habita os poemas homéricos, o amplifica num grito de singularidade e de imortalidade, simultaneamente, do poeta-autor e do protagonista como alter-ego daquele.
Não querendo incorrer num atavismo aforístico de
consequentes escalpelizações redutoras quando se trata de perscrutar um poeta como
Teixeira de Pascoaes, que encerra em si os arcanos de uma ars poetica outra, não resisto, contudo, contornando eventuais
polémicas filosóficas, em ler Pascoaes como um autor de essência, isto é, tendencialmente
ontológico que procura despir a escrita dos artefactos que a ligam signicamente
a uma conversão comodamente material das ideias, do tempo, da representação
simbólica das coisas.
Um texto como o Livro de Memórias faz convergir exemplarmente essa dialéctica
intransponível em Teixeira de Pascoaes: como libertar do traço que contorna e
torna visível em cada aparência física a presença essencial, imutável, submersa
nesse materialismo necessário e inexpugnável? Como sublimar as realidades
fisicamente sensíveis presas aos contornos de uma materialidade que não as
encerra mas prende? Propomos como um dos caminhos de análise para essa
metapoética pascoalina a leitura do Livro
de Memórias como inscrição transtemporal que liberta da inevitabilidade da
morte não as coisas ou as pessoas em si mas o que representam as coisas e as
pessoas, enfim, o alcance do gesto vital a elas consignado, para quem as
imortaliza. Neste caso, as coisas e as pessoas não existem em si senão no que
permanecerá na psique idiossincrática de quem as rememora, descarnando-as da
sensibilidade que lhes pertence e as vivifica, assumindo-se cada vez mais como
parte da essência múltipla do autor e progressivamente como espelho espectral
do que permanece da sua presença rememorativa: a progressiva desmaterialização
de um sujeito essencialmente pensante. Sensível e vivo, o sujeito abraça o
domínio inefável que o irmana com o passado – única presença efectiva que
poderá ser contemplada, pois o presente é obsoleto e inexperienciável –, com os
fantasmas que outrora fizeram parte da sua vida mas que agora fazem parte da
sua essência, com o seu ser que outrora terá existido mas que só agora em si se
manifesta com toda a lucidez, retornando ao seu ente submerso, repensando a sua
ontologia, no sentido lato, a sua vida, não a que está a viver presentemente,
no seu escritório olhando o jardim, mas a que viveu e que reviverá a partir de
uma construção memorialística que também o recupera enquanto sujeito sensível e
pensante. E a aqui, a técnica criacionista de Leonardo Coimbra e a metafísica
da Saudade são urdidos enquanto métodos rememorativos de um passado que só se
consumará enquanto realidade a partir da reconstituição biográfica do sujeito:
do passado e de um presente que só existe enquanto prospecção de um desejo
além-tempo.